Eu
sempre quis ter um Husky Siberiano. Nunca escondi isso de ninguém. E quando
digo sempre, me refiro a um sonho desde que eu era uma garotinha, com meus 5 ou
6 anos de idade. Um sonho que nem mesmo o tempo conseguiria apagar.
Meus
pais, cientes da dificuldade, do trabalho e, sobretudo, da responsabilidade de
manter um animal de médio ou grande porte – elementos estes que eu
desconsiderava completamente –, diziam que me dariam um, só que da Maritel.
Um Husky de pelúcia já parecia de
bom tamanho. Eu poderia apertar, abraçar e levá-lo para dormir comigo. Com
certeza aproveitaria bastante. Porém, fosse de verdade ou de mentira, o Husky
não veio. Dias, meses e anos se passaram, e nada.
Tive um vira-lata de pequeno
porte, com quem, durante quinze anos, compartilhei vários momentos que me
trazem belíssimas recordações. Pelo curto, espoleta, bravo e carinhoso. Essas eram
suas principais características. Mas, seguindo a ordem da vida, ele se foi, e
só quem já foi cativado por um animal conhece a dor de vê-los partir.
Por
um bom tempo não tive outro cachorro e, secretamente, ainda guardava o desejo
de ter um Husky. Talvez quando tivesse minha própria casa. Não sei. Indagava
se, no calor que fazia na minha cidade, não seria uma judiação manter um animal
“feito para o frio”.
Li
bastante sobre a raça, cheguei a fazer perguntas despretensiosas ao
veterinário, tudo para saciar minha curiosidade. E o tempo continuou passando.
Um
dia, em uma caminhada com a família, surgiu um grande impasse: atravessar a
rua, um quarteirão e comprar um churrasquinho de rua, ou não?
–
Quem quer um espetinho? – perguntou a mãe.
–
Eu não. – disse o meu irmão.
–
Nem eu. – respondi.
Dois
votos contra, a boa democracia sugere que devemos dar a volta, desistir do espetinho
de churrasco e ir para casa. Já passava das 19h, tínhamos andado por mais de
duas horas, gastado dinheiro, colocado a conversa em dia. Não faltava mais
nada.
–
Mas eu quero e vou comprar!
E
quem pode contrariar a vontade materna? Quem terá coragem de dizer “não” para
um desejo tão simples? Ademais, insistir muito na ideia contrária poderia gerar
uma grande confusão, e ninguém queria qualquer desentendimento. Seria completamente
desnecessário retornar para casa aborrecidos uns com os outros, ainda mais por
um motivo tão torpe.
Comprar
o churrasquinho foi a decisão final.
Apesar
de me sentir contrariada, eu fui. Talvez estivesse um pouquinho emburrada,
afinal, o cansaço já tomava conta do corpo, mas, bem ou mal, passar mais tempo
com a família não seria ruim. E, se eu não estava com vontade, era só não
comer.
Acabamos
comprando três espetinhos. Por mais que eu me esforce, não consigo lembrar se
comi ou não algum pedaço do meu. Os acontecimentos que sucederam foram tão
imprevisíveis, que minha lembrança me trai nesse pequeno e insignificante detalhe.
O
cheiro da carne atraía pessoas e animais e lá, no meio de tanta gente, ela
desfilava com seus olhos claros, sua magreza excessiva e seu pelo branco e
cinza, completamente duro e ensebado. Apesar de parecer judiada, fraca e
imunda, ela transmitia uma beleza natural e encantadora, que contagiava todos
ao redor.
–
Ah, se eu tivesse uma caminhonete... Com certeza a levaria para casa! – disse o
homem sentado no banco.
–
Ah, se eu já não tivesse cachorro! – disse o outro, devorando um pedaço de seu
lanche.
E
todos jogavam carne para ela... E ali ela ficava, rodeando as pessoas.
Parecia
mesmo abandonada, embora fosse difícil acreditar que alguém pudesse tê-la abandonado.
O mais provável era que tivesse fugido ou algo do tipo. Agora, abandonada? Só
se fosse brava e tivesse atacado alguém, mas essa opção não parecia muito
plausível, dada as circunstâncias.
Era um animal carismático, e até
lembrava um pouquinho um Husky...
–
Ela já está aí há algum tempo – disse o vendedor – ninguém veio procurar. As
pessoas dão comida, e ela fica.
Eu
me indagava como alguém seria capaz de abandonar um animal tão bonito. Aliás,
como alguém pode ter a coragem de ter contato com um animal por determinado
tempo e, depois, seja lá por qual razão, desfazer-se dele, sem um mínimo de
piedade ou compaixão? Enfim, se fazem isso até com pessoas, o que dirá com
bichos...
–
Ah, se não desse tanto trabalho – pensei, tentando ser o mais racional possível,
no esforço de tirar da cabeça a ideia maluca de levá-la para casa.
Foi meu irmão quem destruiu minha
racionalidade:
–
Taí, essa é a chance que você tem de ter o mais próximo de um Husky. Não é o
que você sempre quis?
Era
exatamente aquilo que eu queria. Talvez me faltasse apenas um apoio externo. Um
sinal de que a ideia não era tão maluca assim ou, ainda que fosse maluca, uma
ideia plausível, pensada por mais de uma pessoa. Aliás, pensada por alguém que
não era eu, já que vivo falando coisas sérias que acabam completamente descreditadas.
Enfim, levá-la para casa não parecia mais tão absurdo. Meu irmão havia apertado
o gatilho.
Não
sei o que se passava na cabeça da minha mãe enquanto confabulávamos “o
resgate”. Só sei que estávamos lá, os três, falando sobre algo que até alguns
segundos atrás parecia completamente impossível.
–
Tem um mercado aqui perto, se ela nos seguir até lá, alguém entra para comprar
uma guia, enquanto os outros esperam com ela do lado de fora. – essa foi a
conclusão de três mentes que já funcionavam como uma.
Um
pedaço de carne no chão, outro um pouco mais a frente... os três primeiros ela
pegou, o quarto recusou.
Sem
fome, sem carne; sem carne, ela não nos seguirá. Conclusão lógica que já nos
fazia pensar que o plano havia falhado. O que se há de fazer? A vida tem dessas
coisas.
Por
sorte, temos uma predisposição imensa para prejulgar e cometer erros. E lá
estava ela, nos seguindo, sem receber nada em troca. Portava-se com a cauda e
as orelhinhas completamente abaixadas, e um olhar diretamente voltado para o
chão.
Impossível
não pensar em como esses animais que vivem nas ruas sofrem. Aliás, qualquer
movimento brusco e ela levava um baita susto, se encolhendo toda. Uma reação
que nos partia o coração, provavelmente efeito reflexo de todos os maus tratos
sofridos.
Foi
minha mãe que entrou no mercado. E como demorou! Se me perguntassem, agora,
quanto tempo levou, diria que foi uma hora, embora não deva ter passado mais de
sete minutos. Tempo razoável, se considerarmos a dificuldade em encontrar uma
guia propícia, a fila exageradamente grande e os demais contratempos.
Porém, enquanto ela estava lá
dentro, a preocupação externa era grande. Um minuto parecia dez, pois, a
qualquer momento, o animal poderia cansar da gente e resolver ir embora. E essa
preocupação era pertinente e constante. Precisávamos mantê-la por perto.
Aí
veio o primeiro toque. Apesar de o pelo estar duro e sujo, não me senti mal por
acariciá-la, muito pelo contrário, aqueles primeiros momentos eram mágicos. Eu
estava feliz só pelo fato dela não ter avançado em mim. Nenhuma preocupação se
passou pela minha cabeça, não me importava se ela estava doente, se tinha algum
machucado, se iria me morder. Nada disso. Eu só queria que ela ficasse ali...
Ela não tentou fugir, mas continuava recusando
a carne. Talvez estivesse com sede. Era verão, o tempo estava seco, não chovia
há algum tempo. As ruas não tinham poças que pudessem servir para hidratar os
animais abandonados.
Do
outro lado da calçada tinha um bar em pleno funcionamento. Eu e meu irmão
atravessamos a rua e ela, depois de alguns segundos, nos seguiu com seus passos
trôpegos. Pausa na respiração: ela não viu o carro... e foi por pouco. Posso
jurar que meu coração pulou várias batidas antes de eu perceber que tudo estava
bem.
Enquanto
eu entrei para comprar a água, ela ficou passando de um lado para o outro, do
lado de fora, chamando a atenção de todos os clientes do bar. Quando eles
começaram a indagar se ela não estaria perdida, fiz questão de reforçar:
– Ela está comigo!
Ninguém
contestou.
Paguei
pela água e saí de lá.
Tirei a garrafa da sacola e,
desajeitadamente, tentei servir a bebida para ela, na mão mesmo. Um desastre! Minha
mão não conseguia represar a água, que caía no chão e se perdia no cimento, sem
possibilitar que ela bebesse alguma coisa. Natural, nunca fui muito boa com
improviso de utilidades. Para mim, as coisas são e fazem exatamente aquilo para
que foram projetadas, pensar em usos alternativos está fora de cogitação. A
minha sorte é que as pessoas não são iguais e, nesse ponto, meu irmão é meu
oposto.
Ele,
rapidamente, dobrando a sacola, conseguiu transformá-la em um belo recipiente
onde pode servir água a vontade.
Os
600 ml despejados no bebedouro improvisado quase acabaram. Mesmo imaginando que
ela poderia estar com sede, não pensei que fosse tanta assim.
A
recompensa veio logo a seguir: ela não mais parecia querer sair de perto de nós
e ali, ao nosso lado, deitou, ficando quietinha. Apenas nos acompanhava com os olhos,
sem sequer desencostar a cabeça do chão.
Com
tudo mais tranquilo, liguei para desmarcar um compromisso. A justificativa?
“Estou levando um cachorro de rua para casa”. Podia soar estranho, desculpa
esfarrapada, mas era a verdade.
Desliguei o telefone e comecei a
andar de um lado para o outro. A impaciência, somado ao meu princípio de
hiperatividade, não me permitiriam, sob hipótese alguma, ficar parada.
Finalmente
minha mãe saiu do mercado. A guia serviu perfeitamente. Não foi difícil colocar
a coleira nela. E ela caminhou ao nosso lado como se fizesse isso há anos. E
assim andamos por trinta minutos ou mais.
Apesar
de tudo, ela fazia sucesso por onde passava. Chegaram até a pedir filhotes, o
que é engraçado, porque quando ela – e tantos outros animais – estão nas ruas,
soltos, sem nenhum acompanhante, parecem invisíveis. Depois, se alguém os
adota, causando uma verdadeira transformação, dizem que são animais invejáveis.
E ela nem sequer estava bem cuidada.
Chegando
em casa, ainda faltava uma última aprovação. Meu pai não sabia da história,
então, abrimos o portão e chamamos por ele. Não sei como foi esse chamado, só
sei que ele apareceu na varanda, assustado, achando que alguma coisa ruim tinha
acontecido.
Pedimos
para ele se aproximar e mostramos nossa improvisada companheira de caminhada.
Longe de discordar da ideia, de achar aquilo uma loucura, a satisfação dele foi
demonstrada com um sorriso.
Ao acariciá-la, ele apenas
comentou que era uma pena que o pelo fosse tão duro. Mas, aquilo, com certeza,
não iria afetar em nada nossa decisão de adotá-la.
O
engraçado foi que, no dia seguinte, após levá-la ao veterinário para dar banho
e vacinar, a cadela que retornou foi completamente diferente: um pelo
branquinho (com partes cinzas), soltinho e bem macio. O veterinário informou
que ela estava verdadeiramente imunda – o que era esperado –.
A única coisa que o banho não
resolveu foi o baixo peso, que necessitou de cuidados por um tempo maior.
Tempos
depois uma amiga iria me abordar:
–
Tá de sacanagem que você achou um Husky na rua?
E
quem vai entender as peças que se movem para possibilitar a realização dos
nossos sonhos?